O Exorcismo de Toda Mãe
Ser mãe é padecer no paraíso? Sim. Mas antes, é tentar sobreviver e manter o mínimo de sanidade no inferno.
Desde que virei pai, perdi o interesse por filmes de terror. A paternidade me fez perceber que os roteiros desse gênero dão uma volta muito grande para algo que, na vida real, é bem mais simples de acontecer.
Essas histórias abusam de métodos complexos e coincidências inverossímeis para uma simples invocação do mal: rituais satânicos, sacrifícios, objetos amaldiçoados, livros proibidos, pactos demoníacos, tabuleiro de ouija, bruxaria e diversas outras técnicas arcaicas.
Não me identifico. Quero algo mais moderno. Gostaria de assistir a um filme de terror que trouxesse uma invocação mais corriqueira – algo trivial, possível de acontecer no batidão do dia a dia.
Segue minha ideia de roteiro, baseada em fatos cotidianos reais:
Presa em uma intensa rotina, mãe se descuida e deixa filho pequeno sentir um pouco de fome, abrindo uma brecha para uma terrível possessão maligna. A faminta criança se torna uma criatura infernal que contorce o corpo no chão em ângulos inimagináveis, produz gritos e sons bizarros em volumes ofensivos, assustando toda a comunidade. O monstro é surdo a argumentos, parece não entender a língua dos homens. Não negocia com mortais. A doce criança está perdida em algum lugar daquele corpinho – no momento, inalcançável.
Desesperada, a mãe procura uma solução para exorcizar a entidade e trazer seu filhinho de volta. Busca, instintivamente, qualquer alimento – não há necessidade de estar santificado, benzido ou purificado. O importante é saciar a fome daquele corpinho e fechar a fissura aberta para o submundo. A mãe reúne forças e prepara um pratinho, mas a criatura está agressiva e dá um tapa na colher, fazendo voar pelos ares arroz, feijão, carninha moída e cenoura ralada. A criança precisa da comida, mas o ser apocalíptico se alimenta do caos e é capaz de sugar toda a energia da mãe.
Após uma batalha inglória, a pobre mulher consegue empurrar nutrientes goela abaixo do filho. Como um milagre, da água para o vinho, a inocente criança reassume o corpo. Um anjo. É perturbador como ela não se recorda do que fez. Segue o dia com toda sua pureza, inocência e graça, como se nada daquilo tivesse acontecido.
Para a mãe, não é tão simples. Não há como ignorar feridas abertas. Os estigmas da árdua batalha contra os seres das sombras parecem irreversíveis. Esgotada fisicamente - descabelada, suja, olheiras profundas - e mentalmente - desorientada, traumatizada e à beira da insanidade -, ela olha em volta e vê um ambiente caótico. Sente os olhares de reprovação de quem presenciou o horror, e se envergonha de ter perdido o controle no momento crítico.
Pobre mãe! Nunca há tempo suficiente para uma regeneração completa. O exército do mal é incansável e engenhoso: se aproveita da mínima brecha para uma nova possessão da criança. Pode ser a fome, o cansaço, o sono, a falta de atenção, um banho, o horário de dormir, um salto de desenvolvimento, um capricho, uma simples mudança na rotina, uma atitude autodestrutiva impedida pelos pais, uma fruta cortada quando ela queria inteira. Toda mãe é uma espécie de Constantine, enviando demônios de volta ao inferno.
Ser mãe é padecer no paraíso? Sim. Mas antes, é tentar sobreviver e manter o mínimo de sanidade no inferno.
Não sei vocês, mas só de imaginar esse roteiro, eu fico apavorado. Jamais participarei de um ritual satânico. Sem chance. Por outro lado, é totalmente possível que, a qualquer instante, por qualquer um dos infinitos motivos, meu filho invoque uma birra apocalíptica. Credo. Isso sim é terror na sua pura essência.
Aproveito para te sugerir outra crônica com as mesmas temáticas de “maternidade/parternidade” e “filhos”: Tudo, menos princesa!
O que ando fazendo
Terminei de ler
Rachel de Queiroz fisgou minha atenção quando li uma antologia de crônicas. Era dela o melhor texto daquele livro – que reunia alguns dos maiores escritores da literatura brasileira (Drummond, Rubem Braga, Clarice, Fernando Sabino…).
A crônica era “Iaiá no seu jardim”. Texto lindo.
Daí veio a vontade de ler O Quinze, um dos romances mais importantes da literatura brasileira.
Fiquei chocado ao descobrir que Rachel de Queiroz escreveu essa obra quando tinha apenas dezenove anos. Sim: dezenove!
Na época, Graciliano Ramos comentou: “É pilhéria. Uma garota assim fazer romance! Deve ser pseudônimo de sujeito barbado”.
Amei o livro. É daqueles romances que te trazem uma nova perspectiva, te colocam na pele dos personagens e revelam uma realidade tão próxima – mas que a maioria de nós jamais viverá, a não ser através da literatura.
Realmente uma obra-prima.
Real Gabinete Português de Leitura
Se o Harry Potter fosse português, assim seria a biblioteca de Hogwarts.
Na semana passada, participei de um evento no Rio de Janeiro – um bate e volta sem tempo livre para nada. Ainda assim, consegui arranjar um tempinho para conhecer o Real Gabinete Português de Leitura Que lugar impressionante!
É considerada uma das bibliotecas mais bonitas do mundo. No meu caso, é a mais linda que já visitei.
Curiosidade: a biblioteca foi inspirada no Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa – que eu também tive a oportunidade de conhecer.
Últimas considerações
Tive o maior número de visualizações com o meu último texto: Viajar para provar que viajou.
Muito feliz com os pequenos progressos aqui no Substack.
Vocês não tem ideia da alegria que sinto ao receber uma notificação de um novo inscrito. Um leitor a mais, que maravilha!
De verdade: obrigado, obrigado, obrigado.
Eu fui lendo e me perguntando: Cadê o pai da criança para ser mais um atrapalho na vida da mãe? Estaria ele com um crucifixo ou uma banana amassada para tentar afastar o 'mau' do filho, ou sentado no canto da sala chamando a própria mãe... Pense nisso para ampliar o roteiro.
No final (você) aparece opinativo, sem se tornar o coadjuvante - o filme não receberá um Oscar de melhor ator coadjuvante.
Quanto ao Real Gabinete Português, concordo que é um dos lugares mais emocionantes de se visitar no mundo; uma viagem no tempo, na história literária nacional e na beleza do local.
Por último, não lembro de ter lido esta obra da Raquel... me deixou curiosa e ja vai para minha lista!
Me lembrou muito o bebê do filme Os incríveis kkk muito bom 😈.