O perigo do café
O café era o mesmo de sempre, eu que havia mudado. Desculpa, cafezinho. Não é você, sou eu.
O café é tão improvável que tiveram que tentar de tudo até dar certo:
- Olha essa frutinha que eu achei. - Come ela. - Não é boa de comer assim. - E se torrar o grão? - Torrei, mas não serve para nada. - E se depois de torrar a gente moesse? - Moí, ficou só um pozinho inútil. - E se colocar água fervendo? - Coloquei, mas fica cheio de pó na água. - E se filtrar o pó? - Coloquei no filtro e separei a borra. - E se beber o líquido preto. - Horrível, muito amargo. - E se colocar açúcar? - Agora sim! Habemus Café!
Marketeiro bom esse que vendeu os primeiros cafés, viu? Gênio.
Diz a lenda que quem descobriu o café (sim, descobrir: assim como os portugueses descobriram o Brasil) foi um pastor da Etiópia. Ele observou que quando suas cabras mastigavam aqueles frutos amarelo-avermelhados dos arbustos, elas ficavam alegres, cheias de energia e com vontade de assar um pão de queijim.
Mas foram os árabes os responsáveis por propagar a bebida, pois acreditavam que ela tinha habilidades milagrosas. Hoje, sabemos que é verdade. O café opera o milagre de poder matar tempo de trabalho na copa do serviço sem julgamento; opera o milagre de ser a desculpa perfeita para um primeiro encontro; opera o milagre de quintuplicar o valor dos salgados só por ter o nome "Café" no letreiro da loja.
Tudo é questão de costume. Da mesma forma que o cigarro, o uísque e a academia, com o café também é preciso insistir para começar a gostar. O cigarro, eu nunca coloquei nenhum na boca; o uísque fica atrás de outros alcoólicos na minha preferência; a academia, não frequentei o suficiente; mas o café, eu quis gostar. Foi necessário entornar goela abaixo até criar uma dependência emocional e psicológica. E sim, passei a apreciar. Gostei tanto que me alistei para a guerra contra o açúcar e adoçantes. Hoje, sou um veterano sobrevivente que ama um café puro e amargo.
Sei que meu paladar é pouco apurado. Mas o mau gosto é uma dádiva para quem o possui. Eu, por exemplo, sempre gostei dos humildes cafés populares do supermercado. Na minha opinião amadora, são baratos e gostosos. Por que pagar cinco ou dez vezes mais em marcas melhores?
Viajei para São Paulo e me hospedei, durante uma semana, na casa do Lucas, um amigo metido a barista. Logo na primeira manhã, de forma gentil, ele me acordou no sofá: "Aceita café?” Claro que sim. Meu dia só começa depois de uma injeção de cafeína. Levantei de uma vez, já limpando as remelas para procurar a clássica garrafa térmica preta de quase dois litros, encher um canecão até a boca e dar início a uma bela semana em São Paulo. Fiquei confuso. Nenhum sinal do café, nem o cheiro.
Lucas pediu calma. Explicou que faria um preparo especial. Achei fofo.
Alquimista em seu laboratório, os olhos dele brilhavam ao exibir sua parafernália: recipientes de vidro de diferentes formatos, moedor a manivela, balança, termômetro, filtros, grãos, funis, cronômetro, pincel, escova e outras tralhas que não sei nomear. Pensei: interessante, mas e o café?
Impaciente e irritado, eu precisava da cafeína para melhorar meu humor matinal. Quanta enrolação para passar um café.
Voltei para o sofá e esperei. Finalmente, meu "amigo" chegou com uma pequena xícara fumegante. (pensei: Sério? Uma xicrinha? Que miséria!) Não comentei nada. Peguei o minúsculo recipiente e conferi o conteúdo. Apesar de ter o cheiro, não era café preto. Mas sim uma água suja, marrom ralo.
– Café premiadíssimo. Caro, mas vale cada centavo. Experimenta e me diz.
Tomei um golinho e o café acabou.
– Bom. É… Bem bom. Tem mais?
– Não. Fiz na medida porque tem que tomar na temperatura certa. Não presta se fizer demais.
Pânico. Uma semana inteira à base de água saborizada de café. Se o cheiro não impregnasse tanto, eu compraria café no mercado e passava escondido no banheiro. Dias de tortura do "melhor café" em avarentas doses menores que um Yakult.
Fim de viagem. Voltei para casa. O momento de tirar o atraso. Fiz um litro de café só para mim. Nada como estar no meu habitat e fazer as coisas do meu jeito. Café preto, cheiro gostoso, tudo familiar. Dei o primeiro gole, da redenção. Susto. Bebida horrorosa. Intragável. Nojenta. Que foi isso? Será que o café estava vencido? Não é possível. Havia bebido daquele mesmo pó na semana anterior. Conferi e estava tudo certo. O café era o mesmo de sempre, eu que havia mudado. Desculpa, cafezinho. Não é você, sou eu.
Maldito, Lucas! Tinha estragado meu paladar. O irresponsável havia comprometido o meu futuro, minhas finanças e estilo de vida. Tinha me doutrinado com torras de grãos especiais e preparos da melhor qualidade. Eu o odiei por isso.
Eu estava determinado a voltar para a Matrix. Não queria abrir meus olhos para o mundo real. Precisei passar por uma reabilitação, bebendo meu querido e nojento café vagabundo, até que ele voltasse a ser delicioso. Sete dias depois, consegui resgatar o meu velho eu: aquele idiota que adora qualquer porcaria de café preto.
Faça o que quiser da sua vida: fume cigarro, beba uísque, frequente academia, mas nunca, nunca se acostume a tomar café bom de verdade. Pode ser um caminho sem volta. Por muito pouco eu não conseguia sair dessa.
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Pior que dei um passo além e providenciei um café descafeinado em grãos, também para ser moído na hora, com cafeína retirada em tecnologia alemã inovadora. Maldita hora em que também larguei o café preto com pelos de rato e restos de madeira moído extra forte do mercado.
Hahaha, foi amaldiçoado pelo paladar mais requintado. Aqui em casa também só faço moído na hora. Café bom é cor de caramelo. O tal do preto é grão ruim que sobra da seleção com asa de barata, tudo incinerado. 🤣 Deus me livre. Não admito escritores, com tanta sensibilidade, tomarem rejeitos carbonizados 🤣