Viajar para provar que viajou
As pessoas não querem mais viajar para ter novas experiências. Elas querem viajar para produzir fotos que comprovem que elas viajaram e que passem a impressão de que tiveram experiências.
As pessoas não querem mais viajar para ter novas experiências. Elas querem viajar para produzir fotos que comprovem que elas viajaram e que passem a impressão de que tiveram experiências.
Um amigo me mostra uma fotografia tirada em Pequim: ele segurando um espetinho de escorpião, com a boca aberta, dentes à mostra, prestes a morder a iguaria exótica. “E aí, que gosto tem escorpião?” “Não tive coragem de comer. Só tirei a foto mesmo.”
Um clique, em Nova York, em frente ao MoMA: “Que incrível! Qual era a exposição?” “Não entramos, só paramos na frente pelo registro.”
Outra captura: neve nos alpes suíços, meu amigo em cima de um snowboard. “Foi difícil deslizar nessa prancha?” “Não andei, só peguei emprestado para tirar a foto”.
Diversos registros de não-experiências. Apenas o suficiente para gerar curtidas. Viajar deixou de ser um investimento em si próprio. Tornou-se um esforço na melhoria da percepção que os outros têm a respeito da pessoa e de seu status social.
Como era antigamente, quando não existiam celulares, nem máquinas fotográficas que cabiam no bolso? Sem a necessidade dos registros, nos restava ver os olhos, interagir com pessoas reais, vivenciar, de verdade, o impacto cultural, histórico, emocional ou espiritual que um ponto turístico carregava.
Uma fotografia em uma cachoeira, por exemplo, não aguça todos os cinco sentidos. Não captura o barulho da queda d’água; o vento frio fazendo dançar a cortina de gotículas; a umidade molhando o rosto; os gritos dos andorinhões-velho em seus ninhos atrás da cascata; o calor da trilha e o suor no corpo; o cheiro do protetor solar; o zumbido daquele inseto gigante que tirou um fino da sua orelha; aquela borboleta furta-cor que não parou para a foto, ricocheteando na brisa sem direção; o farfalhar das folhas e das árvores; o barulho dos bichos que definimos como sons do mato. Clique! No retrato: uma imagem embaçada de uma cachoeira diminuta em sua majestade, presa naquele frame 4x5.
Não me leve a mal. Eu sei que existem fotografias impressionantes. É uma arte. Aprecio e reconheço. O problema é quando pergunto para alguém “Como foi sua viagem?” e o infeliz em vez de descrever, com suas próprias palavras, a sua experiência e percepção daquele ponto turístico tão singular, simplesmente saca o celular do bolso e mostra suas fotos - mal tiradas. Me privando de sentir uma pitada de como foi a aventura, narrada em primeira pessoa pelo viajante.
Antigamente, os viajantes não voltavam com fotografias e ímãs de geladeira, mas com histórias que enriqueciam a imaginação dos que não foram. Relatos fantásticos, aventuras exóticas, lugares que pareciam conjurados de sonhos. Eram portadores de experiências encantadas. Regressavam transformados daquelas terras distantes. E, na ausência de imagens, baseadas apenas nas descrições, assim como acontece quando lemos livros, cada pessoa criava na mente suas próprias civilizações, monumentos e arquiteturas magníficas.
A partida era uma jornada ao desconhecido. Hoje, ousamos nos lançar apenas no conhecido. Saímos de casa já sabendo o que vamos ver, o que esperar e qual o jeito “certo” de fazer. As experiências foram enlatadas, como se só houvesse uma única maneira de explorar. Primeiro vá aqui, depois ali, em seguida acolá. É ligar os pontinhos, e entre os pontos não perca tempo. É aquela fotografia no famoso local, do famoso ângulo, com a famosa pose, provando que sim visitou o local. Como que para preencher uma figurinha no álbum, com o único intuito de produzir a evidência de que passou por lá.
Caso contrário, a viagem pode ser desconsiderada: “Como assim você foi em Paris e não foi na Lieu Touristique pour les Idiots. Desculpa, mas então você não foi em Paris.”
E a única memória que a pessoa retém daquele ponto turístico é o perrengue que foi para tirar aquela foto – a fila, a espera, o empurra-empurra, a tentativa de eliminar as pessoas no fundo, os transeuntes passando na frente, a falta de educação alheia e uma enorme aleatoriedade de possíveis imprevistos.
Gastar muito dinheiro para ter a ingrata obrigação de capturar pontos turísticos através de cliques. Com a pegadinha de que milhares de turistas têm a mesma missão inglória que você, tornando sua viagem um pouco mais miserável e gastando o que poderia ser um tempo precioso.
Para uma melhor experiência na sua próxima viagem, faça uma lista de itens que você não pode deixar de esquecer: todas as coisas que possam roubar sua presença, desfocar sua atenção ou tolher suas vivências. Se obrigue a olhar com os olhos; escutar os sons do ambiente; perceber os cheiros do estrangeiro; experimentar temperos e especiarias com atenção ao paladar; e sentir as texturas, temperaturas e sensações de terras distantes.
Já pensou que loucura? Silenciar aquela pessoa cheia de filtros, com experiências de fachada, que seus amigos virtuais (e você) são induzidos a achar que conhecem, e estar presente para você da vida real – cujo perfil só quem precisa curtir é você mesmo.
Minha últimas…
Compartilhando o que tenho feito nessas últimas semanas.
Terminei o livro…
Terminei o livro O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez. Custei para finalizar essa leitura, mas o que me manteve firme foi a escrita do Gabo. Meu livro está completamente sublinhado, rabiscado e repleto de anotações. Aprendo muito lendo seus títulos.
A obra possui uma grande polêmica na história – que eu realmente achei muito polêmico! Não darei spoilers. Quem leu sabe, quem não leu, que fique na curiosidade para ler.
Gabo e os Adjetivos
Quando se estuda sobre a escrita criativa, muito se fala do perigo (e, por vezes, da demonização) da utilização de adjetivos. Sempre me chamou atenção a forma como o Gabo abusa dos adjetivos – claro, de forma brilhante. Abaixo, um exemplo de um parágrafo do livro:
“Uma tarde se encontrou no gabinete do marido, contra seu costume e até contra seus desejos, como se não fosse ela e sim uma outra que estivesse fazendo algo que não faria jamais, decifrando com uma PRIMOROSA lupa de bengala as INTRICADAS notas de visitas dos últimos meses. Era a primeira vez que entrava sozinha nesse gabinete SATURADO de vapores de creosoto, ATULHADO de livros ENCADERNADOS em peles de animais IGNOTOS, de ESMAECIDAS gravuras de grupos ESCOLARES, de pergaminhos HONORÍFICOS, de astrolábios e punhais de fantasia colecionados durante anos. Um santuário SECRETO que considerara sempre com a única parte da vida PRIVADA do marido à qual não tinha acesso por não estar incluída no amor, e por isso as poucas vezes em que estivera ali tinham sido com ele, sempre para assuntos FUGAZES. Não se sentia no direito de entrar sozinha, menos ainda para escrutínios que não lhe pareciam DECENTES. Mas ali estava. Queria encontrar a verdade, e a buscava com ânsias apenas comparáveis ao TERRÍVEL temor de encontrá-la, impelida por uma ventania INCONTROLÁVEL mais IMPERIOSA que sua altivez CONGÊNITA, ainda mais IMPERIOSA que sua dignidade: um suplício FASCINANTE.”
O amor nos tempos do cólera. Gabriel García Márquez. Editora Record
18 adjetivos em um só parágrafo.
Os adjetivos utilizados pelo Gabo não são vagos nem genéricos – longe de serem atalhos preguiçosos. Cada um possui função estética, emocional ou simbólica. Seus adjetivos auxiliam na construção de uma atmosfera sensorial, ampliam o subtexto e dão indícios do mundo interior da personagem. Uma verdadeira aula.
O que estou estudando
Na minha Pós-Graduação em Escrita Criativa e Carreira Literária, estou fazendo o módulo “Como escrever um romance”, com a escritora Vanessa Passos, autora do livro A filha primitiva, vencedor do Prêmio Kindle de Literatura.
Tenho dois projetos de romance em andamento. Mas, ao longo das aulas, ficou mais claro qual das duas ideias devo priorizar.
Também concluí o módulo “Escrevendo Literatura para Crianças e Jovens e HQs”, no curso Formação de Escritores. Ministrado pelo professor e escritor Vilto Reis. Nunca tive intenção de escrever direcionado para o público infantojuvenil, mas achei interessante aprender as estratégias e técnicas específicas para esse gênero. Uma das minhas ideias de romance se encaixa bem nesse perfil – embora não seja o romance que estou trabalhando momento.
Últimas considerações
Cada semana tento variar o estilo dos textos. Minha ideia é seguir mais ou menos a seguinte tônica: crônicas sobre meus filhos; crônicas sobre relacionamentos; crônicas com temas variados; e ensaios. Tem sido assim desde o início desta newsletter.
São experimentações – e amo que vocês estejam lendo. Muito obrigado.
Se estiverem curtindo, compartilhem com um amigo que possa gostar desse conteúdo. Isso me ajuda muito.
Nossa, muito bom Dan!
Eu sou viciada em viajar e em tirar muitas fotos, mas sou mais viciada ainda em colecionar memórias e experiências. Não tem nada mais gostoso do que viajar e conhecer novas pessoas E (ênfase aqui pois é a melhor!) viver novas culturas, não apenas fotografar e fingir. As redes sociais, infelizmente, se transformaram em vidas de aparências. Qual a graça em postar o que não viveu? Qual a graça em seguir o roteiro e as linhas seguras do mapa? Eu amo andar desbravando novos lugares, sem muita noção de onde estou indo. Mas claro, também amo ver, com os próprios olhos, os pontos turísticos. haha
Por uma vida com menos viagens de aparência e mais experiências de alma! 🌍
Quase não tiro fotos mas me fez refletir sobre como posso estar perdendo oportunidades incríveis por não compartilhar com mais detalhes as minhas experiências... :p